Quinta-feira, 26 de Abril de 2012
In memoriae Miguel Portas

Revolução: testemunho, por Miguel Portas

A cada um a sua revolução. A minha iniciou-se ainda no tempo da outra senhora, uma expressão que caiu em desuso. E coincidiu com outra, obrigatória pela lei da vida, a da passagem à adolescência. Crónica de Miguel Portas de abril de 1999, retirada no livro “E o resto é paisagem”.
Foto do Centro de Documentação 25 de Abril

A minha revolução tinha, por isso, razões de urgência inusitada.

No meu país os estudantes do ensino secundário estavam separados entre liceus e escolas técnicas. Os primeiros chegariam às universidades, os segundos ficar-se-iam por um ofício qualificado. Não viria daí mal ao mundo, se tal representasse uma escolha. Acontece que era um destino. Filho de operário, operário serás. Filho de rico, garantia de doutor. Eu estava no segundo grupo, mas nem por isso sentia menos a injustiça.

No meu país os estudantes do ensino secundário estavam separados por sexos. Havia liceus para rapazes e liceus para raparigas. Alguns tinham mesmo muretes de separação, seguramente para estimular a imaginação. Elas estavam obrigadas a usar bata, a bata das escolas delas. Nós não, que éramos candidatos a homens.

No meu país as universidades já eram mistas. Elas eram bem menos do que eles. Elas sentavam-se, por ordem alfabética, nas primeiras filas do anfiteatro. Eles, também por ordem alfabética, ocupavam o restante. Assim era fácil marcar faltas: os alunos não tinham nome, na realidade tinham número.

No meu país havia, como em qualquer outro, bons e maus professores. Mas, com excepções, aquilo não era ensino, eram exames de memória. Um colega não perguntava ao outro «já estudaste aquilo?», invectivava-o com um «já decoraste?»

No meu país os nossos pais estavam condenados a entenderem-se sempre e para sempre. Casavam pela igreja, não tinham direito a divórcio. Há quem diga que o hábito faz o monge, mas a máxima nem sempre se aplica. Esta obrigatoriedade sobrava para muitos filhos, principalmente sobrava para muitas filhas.

O papel da igreja era omnipresente. Quem não fosse à missa era olhado de soslaio. Mas nem isso evitava as crises de fé, que geravam hecatombes familiares, ou vice-versa. Naquele tempo havia filhos e meio-filhos, não havia apenas filhos. Eu tinha uma meia-irmã, adivinhem lá o que isso seja. Durante anos não pôde visitar parte da família alargada. Culpada por ter nascido à margem da lei que os homens atribuíam a Cristo.

E depois, no meu país havia ainda o espectro de uma condenação antecipada: a guerra. Mais cedo ou mais tarde, iríamos lá bater com os costados. Em nome da Pátria e da nossa missão civilizadora no mundo dos cafres, assim era legítimo classificar os africanos.

Ah! E havia política. Lembro-me de ver Marcelo Caetano na televisão.

A emissão chamava-se “Conversas em família”. O patriarca falava e a plateia escutava. Parece que esta forma de comunicação foi então uma novidade absoluta no pacato mundo dos lusitanos, uma modernice. Adivinhem como seria antes...

A revolução, portanto. E nada menos do que a revolução.

A revolução começa por ser uma construção contra a realidade, um mundo como o que os primeiros cristãos escavaram para se protegerem das forças do Império romano.

No mundo onde me envolvi, os rapazes e as raparigas eram iguais. Não aprendíamos o que a escola nos dava, mas exactamente o que ela nos escondia. Outras leituras, outras músicas, outra conversa. E outra História.

Outra vida, também. Com maior ou menor tolerância das famílias, conquistávamos o tempo. Tempo para reuniões, agitações ou manifestações-relâmpago de alta adrenalina. Mas tempo também para acampamentos e namoros, tempo até para, à boleia, se conhecer Paris ou visitar a meca das liberdades, Amesterdão. No fundo, tempo para se confirmar como Portugal ficava mesmo muito longe do mundo. Do mundo e do nosso mundo.

Depois a revolução é a própria revolução, quando a nossa «contra-realidade» emerge como realidade. Há imagens que ficam para uma vida. A minha é a de um velho contínuo do Liceu Passos Manuel, homem corajoso que nunca denunciara as acções de agitação que, amiúde, se faziam. Foi ele quem, no dia 26 de Abril, se colocou na frente dos estudantes, hino nacional saindo da sua boca, antes da invasão das instalações do Secretariado para a Juventude (antiga Mocidade Portuguesa) do liceu. Esperara uma vida por aquele gesto e era comunista.

Lembro-me também da noite em que ficou claro que havíamos perdido. Da preocupação nos rostos, no desespero de alguns porque não era assim que estava escrito. E recordo-me também do alívio com que ouvi Melo Antunes nessa noite. Perdera-se, mas não se perdia tudo.

Perdemos? Uma revolução incompleta é uma revolução falhada? Talvez a História venha a dizer-nos que sim, ou talvez esta não seja a boa pergunta. Com ou sem revolução estaríamos hoje onde estamos, como diz Saramago? Mas como é possível não se ter superado ainda na cultura da esquerda a submissão estalinista aos resultados como critério de verdade? Como é possível continuar a desvalorizar o modo – neste caso, a revolução – face às finalidades? No limite, revolução é atitude, atitude de vida. O que ela, quando ocorre, tem de extraordinário, de único e insubstituível, é que marca quantos com ela se travam de razões.



publicado por livrecomoovento às 22:28
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Segunda-feira, 23 de Abril de 2012
FALTA CUMPRIR ABRIL


“Estamos a voltar ao antigamente, com coisas muito semelhantes. Ninguém pode viver à mercê da boa vontade dos outros. Surpreende-me a capacidade de mobilização para estes movimentos (de dito apoio social e solidário), mas não para discutir as leis e lutar pelos direitos das pessoas. Esta caridadezinha não é liberdade. Isso é capitalismo selvagem”.

Rita Blanco (artista)

 

É frequente ouvir-se a frase “Precisamos dum novo 25 de Abril”. Já se fazem inquéritos de rua e entrevistam-se figuras eminentes de vários quadrantes políticos, empresariais, universitários, culturais, sindicais e outros. As opiniões divergem…, mas há uma constatação comum: algo está mal.

A esperança nascida com o 25 de Abril de 1974, transcrita na nossa Constituição, apontava para mais justiça social e económica; igualdade de direitos no acesso à saúde, ao ensino e ao trabalho; liberdade de expressão e associação. Em teoria, tudo isto parece ser verdade, mas a realidade é bem diferente.

Os sucessivos governos não alteraram, e até criaram, as leis que protegem indecentemente os mais poderosos em detrimento dos mais desfavorecidos. O nosso sistema de saúde e o ensino encaminham-se para o retrocesso aos tempos do fascismo em que só os poderosos tinham acesso a saúde de qualidade e ao ensino superior. O direito ao trabalho é, cada vez mais, uma miragem e transforma-se, progressivamente, em obrigação de desemprego.

Podemos falar e protestar em liberdade, mas a máquina propagandista da inevitabilidade, na sua ânsia de pregar a necessidade do suicídio económico coletivo, está de tal forma montada que abafa e distorce deliberadamente os objetivos dos protestos e cria medo. Medo de represálias no acesso ao trabalho, medo de ser preterido na carreira profissional, medo de ser apontado como malandro. Quanto maior é o medo, menor é a esperança.

Há vinte anos, os nossos governantes venderam a nossa agricultura, comprometeram as nossas pescas e deixaram destruir a nossa, já de si débil, indústria. Decidiram gastar dinheiro em betão e alcatrão endividando o país com investimentos não reprodutivos. Agora dizem que nos endividámos porque vivemos acima das nossas possibilidades. A solução preconizada é voltar a empobrecer a classe média e tornar os pobres miseráveis.

Que dívida é esta? A quem devemos?

A dívida das famílias prende-se, essencialmente, com o crédito à habitação e com o crédito automóvel. São créditos domésticos, ou seja, dívidas contraídas junto da banca nacional. De igual modo, o crédito obtido pelas nossas empresas é também, quase na sua totalidade, junto da banca nacional. Então, a quem devem aqueles que estão a ser obrigados a pagar a dívida externa do país?

Enganaram-nos dizendo que foi pedida ajuda externa porque já não havia dinheiro para pagar ordenados, e continuam a insistir nessa mentira. Nada mais falso. O dinheiro faltou, sim, mas para pagar as dívidas que o governo contraiu em benefício da especulação financeira. Porém, o ‘elo mais fraco’ é que serviu de bode expiatório e arcou com as consequências.

Enquanto houver pessoas a sobreviver de caridadezinha, à mercê da boa vontade dos outros; enquanto alguém tiver que lutar por direitos em vez de os exercer; enquanto houver medo e faltar a esperança, não é necessário um novo 25 de Abril, o que falta é cumprir Abril.

 

Publicado em Jornal Incentivo



publicado por livrecomoovento às 00:15
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Segunda-feira, 9 de Abril de 2012
LAPSOS – A nova forma de mentir

Passos Coelho, antes de ser Primeiro-Ministro, dizia que nunca invocaria os erros do seu antecessor para justificar as medidas a tomar, que conhecia bem todos ‘dossiers’, que sabia bem o caminho que iria seguir, que não agravaria mais a carga fiscal, que iria desenvolver a economia e inverter a tendência crescente do desemprego.

Tudo mentira.

Já no governo, rasgou todas a suas promessas, esqueceu tudo o que sabia e as certezas são, agora, imprevistos. Invoca constantemente os erros do passado, como se a política do seu partido não fizesse parte desse mesmo passado. Critica as parcerias público-privado, como se elas não tivessem sido introduzidas em Portugal por Cavaco Silva e, mais tarde, reformuladas por Ferreira Leite. Diz, agora, que temos é que apostar na agricultura, aquela mesma agricultura que os governos de maioria PSD desbarataram na década de 1985/95.

Há, apenas, um único caso em que este governo de direita não culpa o passado: quando encobre e branqueia o escândalo BPN. Porquê? Simples. Porque dele faz parte o grosso da coluna cavaquista que mais tempo governou Portugal e que mais sonegou o erário público em proveito próprio.

O desemprego aumenta constantemente. A economia já não está estagnada, retrai cada vez mais e de forma assustadora. Diminui a capacidade financeira de quem vive do seu trabalho. Os custos com a saúde provocam a mortandade de reformados, pensionistas, doentes oncológicos e outros mais desfavorecidos. O acesso ao ensino, à semelhança do tempo de Salazar, será, brevemente, um privilégio para os filhos dos senhores ricos. A cultura tende a ser um luxo, apenas para alguns. O desporto, face à diminuição dos apoios, é, cada vez, mais elitista.

Mas este governo inovou, aproveitando de forma oportunista o novo acordo ortográfico, e à semelhança da sua prática à luz do da ‘troika’ – o tal que dá imenso jeito à sua política de direita – quis, também, ir mais longe do que a ortografia, entrando, assim, no campo semântico. A riqueza do nosso vocabulário permite ao governo, de forma abusiva, chamar lapso à mentira recorrente, exceção ao favorecimento escandaloso, imprevisto à omissão deliberada, temporário ao pretensamente definitivo.

Tudo isto para quê? E em nome de quem? Para satisfazer a ganância dos especuladores dos grupos financeiros e para prestar vassalagem aos coveiros da Europa?

Não terá chegado o momento deste Povo dizer que também cometeu um lapso, que se enganou, e que, verdadeiramente, o que quer é outro governo e outra política para o país?



publicado por livrecomoovento às 02:14
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